Konrad Felipe – Jornalista
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Se o Brasil fosse um país sério, muitos dos falsos pastores e profetas que se multiplicam em templos e transmissões ao vivo já estariam atrás das grades. Aqui mesmo em Barra do Garças, muitas vezes verdadeiras sociedades empresariais dividem-se e multiplicam-se conforme os lucros diminuem. Quando o caixa aperta, a solução é simples: racha-se a congregação, cada sócio funda sua filial da fé e o espetáculo continua.
O problema é que o culto à aparência, à autoridade do púlpito e ao dízimo automático virou um negócio que se sustenta não mais pela espiritualidade, mas pela repetição de jargões, promessas de milagre e a blindagem que se cria em nome de Jesus. Como já se disse por aí: no Brasil, pode-se fazer quase tudo — desde que se diga “em nome de Jesus” antes.
Essa semana, no entanto, um caso chamou a atenção nacional: o do “pastor mirim” Miguel Oliveira. Com apenas 14 anos, Miguel ficou conhecido por vídeos em que promete curar doenças graves como câncer e leucemia. “Eu rasgo o câncer. Eu filtro o sangue. Eu curo a leucemia”, diz ele em performances gravadas e amplamente divulgadas. A repercussão foi tamanha que o Conselho Tutelar agiu, advertindo os pais do garoto e proibindo a veiculação de novas gravações que o exponham em atividades religiosas. O motivo não foi o conteúdo de suas falas, mas sim a idade — a preocupação é com a saúde mental, física e o direito à educação do adolescente.
Nesse mesmo Brasil, enquanto se fiscaliza o trabalho infantil em lavouras, o púlpito infantil segue como zona cinzenta. A regra é clara: Miguel pode seguir nos cultos, mas fora das câmeras. Se os pais insistirem, poderão enfrentar sanções legais, até mesmo o risco de perder a guarda.
A pergunta que fica é: como chegamos a esse ponto?
O episódio de Miguel, embora recheado de frases absurdas e promessas infundadas, não é uma exceção. É, na verdade, um sintoma. Um sintoma de uma crise profunda — não apenas da religião institucional, mas da própria espiritualidade. O que se vê hoje em muitos púlpitos, canais de YouTube e rádios evangélicas é a substituição do caminho cristão pela ideia de milagre instantâneo. A fé se torna atalho. A cruz é encurtada. O sofrimento é eliminado da narrativa. Cristo, reduzido a um slogan.
O caso de Kelly, uma fiel que afirma ter sido curada por Miguel, ilustra bem esse dilema. Ela testemunha sua cura com entusiasmo, mas ite seguir com o tratamento médico. “Eu fui curada sim. O câncer voltou sim. Mas continuo meus tratamentos”, diz. Fé e ciência se entrelaçam, mas a narrativa que se vende é a do milagre. A realidade é mais complexa. A doença persiste, a vida continua, e com ela a necessidade de discernimento.
Na ânsia de angariar fiéis e aumentar a arrecadação, muitos pastores abandonaram o cristianismo como doutrina ética e o transformaram em palco de promessas fáceis. A ideia de “Jesus como o único pastor” é confrontada com discursos corporativos: “Aqui tem que ter pastor, irmão”, dizem. Como se a figura do pastor fosse um cargo hierárquico com autoridade espiritual garantida, mesmo que suas atitudes neguem o evangelho que dizem pregar.
A crítica aqui não é contra a fé, mas contra a sua instrumentalização. O cristianismo, em sua origem, é radical. Jesus propôs uma moral interior, não de aparência. No Sermão do Monte, ele ensinou que não basta não matar — é preciso não alimentar ódio. Não basta agir corretamente — é preciso pensar com retidão. Essa revolução moral é incompatível com o discurso mercantilizado que domina boa parte das igrejas midiáticas do Brasil atual.
Enquanto em países como Angola, a Igreja Universal enfrentou investigações, deportações e rebeliões internas, aqui seguimos em marcha lenta. O que lá virou caso de justiça, aqui ainda é tolerado sob a capa da liberdade religiosa — liberdade esta que não pode ser confundida com impunidade ou omissão.
É preciso distinguir religião de espiritualidade. A religião pode organizar cultos, criar doutrinas, gerar comunidades. A espiritualidade, porém, é pessoal. É consciência. É o sopro vital que nos conecta com o divino — e que nos torna conscientes de nossos pensamentos, sentimentos e atos. Quando Cristo diz “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem”, ele nos alerta: a ausência de consciência é o maior dos pecados.
Portanto, mais do que julgar Kelly, Miguel ou qualquer fiel que busca um alívio na fé, é urgente questionar os modelos religiosos que se impõem como atalhos. Atalhos não salvam. Jesus nunca prometeu facilidade. Ele disse: “Eu sou o caminho” — e não o milagre automático.
O Brasil vive, sim, uma crise espiritual. Mas não por falta de pastores. Falta, antes, discernimento. Falta verdade. Falta consciência.
E como diria o próprio Cristo, em Mateus 7:15: “Cuidado com os falsos profetas. Eles vêm a vocês vestidos de peles de ovelhas, mas por dentro são lobos devoradores”.
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