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A estranha ternura dos bebês reborn: o que essa febre diz sobre o Brasil de hoje? 546q51

Foto: Reprodução

Konrad Felipe | Jornalista – [email protected]

Em uma tarde abafada de maio, uma adolescente de Janaúba (MG) entra em cena nas redes sociais com um vídeo que parece, à primeira vista, insólito: ela leva seu bebê ao hospital. Mas não se trata de um bebê real. “Bento” é um boneco hiper-realista, um reborn, e o vídeo é uma encenação, um role play. Ainda assim, o conteúdo viraliza e divide opiniões. Há quem a chame de louca, outros de artista. O que poucos parecem dispostos a fazer é entender o que está por trás desse novo fenômeno social que desperta espanto, riso e, em alguns, fúria.

Nas últimas semanas, os bebês reborn – bonecos incrivelmente realistas que simulam bebês de verdade – têm ocupado o centro de uma controvérsia no Brasil. Vídeos de mulheres adultas cuidando, mimando, e até levando seus bonecos para ear ou ao médico geraram memes, indignação, e até projetos de lei. Mas por que isso incomoda tanto?

A resposta talvez não esteja nos bonecos, mas nas rachaduras da nossa sociedade.

Um espelho quebrado da maternidade

Para a psicanalista Thaís Basile, autora de Nossa infância, nossos filhos e Atravessando o deserto emocional, a comoção causada pelas “mães de reborn” revela um incômodo mais profundo: o modo como a sociedade impõe à mulher um ideal de maternidade compulsória e perfeita — inatingível na realidade, mas possível no imaginário.

“Quando falamos de reborn, estamos falando de um cuidado fantasioso, e isso toca na ferida do nosso desamparo estrutural”, afirma Basile. Segundo ela, cuidar de um boneco é uma forma simbólica e segura de exercer um papel social que, na prática, sobrecarrega, adoece e, muitas vezes, mata.

O Brasil é o país onde mais de 70% dos feminicídios atingem mulheres mães. São mais de 11 milhões de mães solo, muitas vivendo sob precarização extrema. E, ainda assim, não há leis que garantam licença paterna igualitária, nem políticas públicas suficientes para apoiar a maternidade real. Frente a essa realidade, não seria tão absurdo que algumas escolham cuidar de um bebê que não exige nada – que não chora, não adoece, não demanda mais do que um afeto simbólico.

Uma arte, uma denúncia, uma fuga

É preciso entender: o universo reborn não é apenas sobre nostalgia infantil ou carência emocional. Para muitas mulheres, é hobby, arte e até fonte de renda. Artesãs como Sara Gomes, de Contagem (MG), dedicam horas a pintar manualmente cada camada de pele, fio de cabelo, sombreamento e textura desses bonecos. Cada bebê reborn é uma pequena escultura afetiva.

Nas redes sociais, nomes como Y.B. e Nane Reborns têm acumulado milhares de seguidores com conteúdo que mistura o lúdico e o performático. Para os críticos, é delírio. Para os fãs, é criação artística. Para a indústria do algoritmo, é puro ouro.

Mas há um ponto de inflexão: quando essas atuações cruzam a fronteira do faz-de-conta e tocam as estruturas da vida pública — como uma jovem sendo flagrada tentando “furar fila” com um boneco. A resposta institucional tem sido rápida: projetos de lei que buscam proibir o uso de reborns para ar serviços públicos começaram a surgir, surfando a onda do moralismo digital.

Thaís Basile alerta: “Parlamentares estão aproveitando o engajamento para ganhar visibilidade com projetos que não trazem nenhum benefício real à população”. Enquanto isso, a realidade das mães de carne e osso continua invisível, abandonada.

Por que o cuidado feminino incomoda tanto?

Se um homem adulto se fantasia de herói num evento geek, todos aplaudem sua originalidade. Mas se uma mulher adulta brinca de boneca, o julgamento é imediato: “caso psiquiátrico”, “fuga da realidade”, “falta do que fazer”.

A crítica, segundo Basile, é marcada por misoginia: “Mulheres estão sendo mais patologizadas por cuidar de bonecos do que homens que usam bonecas para sexo”. O cuidado, quando fantasioso ou lúdico, a a ser visto como uma falha, um desvio, uma ameaça à ordem. Como se a mulher só pudesse cuidar de coisas reais e úteis — filhos, maridos, casas.

Há aqui um duplo padrão social: hobbies e escapismos são toleráveis, até incentivados, para os homens. Para as mulheres, são lidos como regressão, disfunção, histeria.

Entre a idealização e o trauma

Os bebês reborn, argumenta Basile, não são apenas bonecos. Eles são símbolos de algo maior: da busca por uma maternidade idealizada que nunca se concretiza; do trauma herdado de mães que tentaram nos transformar em bonequinhas perfeitas para agradar um patriarcado impiedoso. São também um eco da fetichização dos próprios filhos nas redes sociais — crianças reais usadas para gerar engajamento, fama e dinheiro.

Nesse sentido, o reborn é uma versão inofensiva (e plástica) dessa lógica. Não há um bebê real sendo exposto, mas um simulacro, um reflexo distorcido de nossos desejos mais íntimos.

O Brasil que brinca para não quebrar

A arte reborn, no fim das contas, é mais um retrato do Brasil contemporâneo: um país em que a maternidade se tornou uma missão impossível, onde mulheres são cobradas por tudo e apoiadas em quase nada. Um país onde o real fere tanto, que o imaginário se torna refúgio.

Os bebês reborn são um espelho — e, como todo espelho, refletem tanto a beleza quanto as rachaduras. Resta a cada um de nós decidir: vamos rir, atacar ou tentar entender?

Porque quando uma mulher adulta segura um boneco como se fosse seu filho, talvez o que ela esteja dizendo, em silêncio, seja apenas: “eu também queria ter sido cuidada assim”.

 

 

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